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21 de dezembro de 2015

MERITOCRACIA - PORQUÊ SER CONTRA?

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A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável "ética do merecimento", uma perversa "ética do desempenho".


Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.

Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal.
O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem.

Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado.

O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso).

Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mundo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.


Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.

Desta forma, no mundo da meritocracia - que mais deveria se chamar "desempenhocracia" - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.

A meritocracia escamoteia as reais operações de poder.

Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente.

Seria ingênuo supor o contrário.

Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico.

Bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, "promovendo" as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante.

Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos "bons"desempenhos.

Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que, por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política.

Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.

Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais.

O problema é que, sob o manto da suposta "objetividade" dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política.

Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.

A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos "racionais", e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade).

A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.

A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados.

Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos.

Vale mais a pena ser o Paulo Coelho e fazer uma literatura calibrada para vender.

Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta.

Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.

Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados.

A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas.

Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.


Fonte: Debate

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